sábado, fevereiro 21, 2009

Let's talk about love I

Se você quer aprender a amar, esqueça.
Faz como quem põe leite pra ferver e sabe que o leite só ferve quando você não está olhando. Faça como aquele personagem do filme "Mistery Men", o Garoto Invisível, que só fica invisível quando ninguém está olhando.
Amar, caramada, acontece.
Como aconteceu esse erro de digitação: ia escrever "camarada" e escrevi "caramada".
Acontece.
E acontece, geralmente, quando você não está olhando, porque quem está olhando está pensando e quem está pensando não enxerga.
Amar não é pensar. "Tente racionalizar o amor e perderá a razão", diz um ditado francês e, segundo dizem, franceses entendem de amor, mas eu não entendo o bastante de franceses para confirmar.
O amor é o Mestre dos Magos da vida.
Quando você está distraído o bastante, ele aparece, resolve todos os seus problemas com a maior facilidade e fica invisível sem se explicar.
Não tente explicar.
Não tente definir.
Definir é matar. O amor sugere, porque sugerir é criar.
Se você quer aprender a amar, esqueça.
Esqueça o amor que circula nas ruas, estampado em outdoors, gritando em campanhas publicitárias e esqueça esse amor que foi dissecado pelas ciências - pelas ciências, meu Deus, pelas ciências!! - embalado com perfumes caros, estampados em roupas de grife, com reservas em restaurantes chiques e com certificado ISO-9002.
Esqueça tudo isso e lembre-se: amar, assim como a arte, é absolutamente inútil.
Na última coluna, falei sobre revolução e, agora percebo, falava sobre o amor.
Teve gente que comentou comigo: "esquece... não existe revolução".
Depois de digerir a resposta por horas, ponderei: que pena que não existe revolução para você.
Quem não acredita na possibilidade de revolução, não acredita na possibilidade de amar, porque amar é, justamente, a verdadeira revolução. Uma revolução que é tua. É como se você mudasse a casa da sua alma. Você pega tudo que dava como seguro, certo e correto e troca - sem garantia nenhuma de retorno - pelo inseguro, pelo incerto e pela dúvida.
Em "Me Liga", dos Paralamas, Herbert Vianna canta "teu exército invadiu o meu país".
É isso que acontece.
Imagine um exército invadindo um país. Agora, imagine que esse exército é bem vindo. Agora, imagine que os exércitos deixem de existir e os dois países se unam em um só, admitindo que são dois, mas dividindo comida, dividindo cultura, todos os seus hábitos, interpenetrando suas almas e inteligências.
Imagine que eles nunca se perguntam se a vida não era melhor antes da invasão.
Se perguntam, não respondem.
Se respondem, não entendem a resposta e essa resposta permanece como uma dúvida eterna, um post-it amarelinho lembrando você de que tudo - absolutamente tudo - é uma dúvida eterna que encontra em sua insolubilidade sua suprema graça.
Não pense.
Se você pensar demais, vai acabar encontrando um bilhão de motivos pra não amar.
Se você não pensar - porque o único motivo para amar não pensa - se você apenas disser "e se eu querê?"... Esta lá a flor - a mais linda flor do mundo - cravada na beira de um abismo aterrador. Você vai lá e colhe a flor e alguém te diz "e o abismo?" e você responde "que abismo?".
Em um mundo de dominados e dominadores, fica meio inconsistente qualquer defesa à entrega. É preciso que haja entrega, que não haja comando nem autoridade.
Entregar o que pra quem? Por quê?
Não sei.
Esta é a resposta: Eu não sei.
A única coisa que eu sei dizer é que existe a possibilidade de você dar tudo que tem e ficar com mais do que já tinha, mas isso é uma coisa que só vale se você responder pra você. A minha resposta vale tanto quanto um bilhete numa garrafa trazida pela maré.
Sei que é duro convencer alguém de que a vida pode ser melhor com uma coisa se, sem ela, a vida vai continuar a mesma. É igual em Matrix, quando Morpheus oferece a Neo a opção de decidir entre a pílula azul e a pílula vermelha. "Você toma a azul e acorda na sua cama, acreditando no que quiser acreditar. Você toma a pílula vermelha, permanece no País das Maravilhas e a gente vai ver até onde vai o buraco do coelho". Antes disso, ele lembra: "É um caminho sem volta".
Não dá pra defender o amor. Mesmo porque, depois de consumado, ele ainda é inseguro, ele ainda é inconstante e ele ainda pode ser doloroso.
Amar dói, sim, porque é um compromisso que você assume com o seu próprio crescimento. Você admite que não vai mais inventar um personagem para você mesmo, que não vai mais aceitar invenções sobre quem você é. Você cansa disso porque tantos anos se passaram e... quem é que te conhece de verdade? Então, caem todas as máscaras e, no amor, fica sua verdadeira face humana, com todos os defeitos e qualidades, no mesmo pacote, em constante movimento.
Se por um lado, há a dor de descobrir quem você não é, existe, do outro, a alegria de descobrir coisas novas sobre você o tempo todo e em velocidade espantosa. Só espero que, na hora que a dor se mostrar, você lembre que ela é parte ainda do que te faz forte.
O que eu sei sobre amar é isso: nada.
Sei que, as vezes, a gente não entende o amor e que isso é plenamente aceitável.
Quando a gente começou a aprender os fundamentos da matemática, a gente não aprendeu que existe o "Pi"? A gente não aprendeu que "Pi" - arredondando - é igual a 3,14?
Por que é tão fácil pra gente aceitar que existe um "Pi" e tão difícil reconhecer que existe outra coisa que também é natural, irracional, inconstante e infinita?
Acho que é porque o "Pi" a gente pode arredondar.

Nota final: Se você é um daqueles que gosta de coisas exatas, clique aqui e confira os incríveis dez mil primeiros dígitos do "Pi".


Postagem original AQUI

quinta-feira, fevereiro 19, 2009

Por onde eles andaram?

Era uma daquelas festas normais, de vizinhos normais, comemorando o casamento da filha do amigo de alguém, no final do ano de 1989. Ela, uma menina normal de seis anos, que odiava com todas as forças do mundo estar naquele vestido de cetim azul. Numa criança de cabelos loiros cacheados teria ficado angelical, mas em contraste com seus cabelos pretos e os joelhos e cotovelos injuriados que ela ostentava quase com orgulho, era apenas um vestido sem propósito. Não se chamava Sofia, mas viria a descobrir, anos depois, que era bom ser Sofia às vezes, para se esquecer por um minuto das mazelas do mundo. Aqui, se chamará ‘Ela’, uma mulherzinha, não no sentido pejorativo da palavra (uma vez que Ela não sabia o significado de tal palavra), mas sim no sentido de diminuta.

Sua mãe, com filha pequena em casa e outra por vir, preferiu declinar do convite para a festa, prometendo aos vizinhos normais que enviaria seu marido na companhia d’Ela, sua primogênita, para representar a família. Ela já previa uma noite de tédio, na inocência de seus seis anos, onde teria de se entreter ora roubando guloseimas da beirada da mesa, ora tropeçando nas barras dos vestidos, igualmente incômodos e feios, das outras mulheres na festa.
Já ia saindo, correndo atrás do pai que se afastava, quando sua mãe a segurou e disse, com a mão pousada suavemente em seu ombro:

_ Vai. E toma conta do teu pai.

Ela já sabia o que sua mãe queria dizer. Seu pai era um daqueles pais que deveriam ter sido meninos por mais tempo. Vez ou outra aprontava alguma traquinagem de adultos que Ela também não sabia o que significavam, mas sabia sim que deixavam os olhos azuis de sua mãe de um jeito esquisito, parecendo céu nublado. E Ela não gostava de vê-los assim.

Chegando à festa, sua desconfiança se confirmou: nenhuma criança, nenhum brinquedo, nenhum jogo. Apenas adultos que falavam e bebiam sem parar. Música ruim, sem voz. Nada que Ela conhecesse das fitas K-7 ou LPs que eram ouvidos em casa. Sem muita esperança de diversão, aceitou um copo de refrigerante e sentou-se num canto, pondo-se a observar seu pai, que ia ligeiro de grupo em grupo, trocava meia dúzia de palavras entremeadas por sorrisos vazios e voltava a procurar um dos adultos com bandejas cheias de copos bonitos, diferentes daquele que haviam lhe entregado.

Foi quando aquela mulher chegou. Aquela mulher grande, maior que sua mãe, metida num vestido azul de cetim, como o d’Ela. Com olhos de lince que não pertenciam a uma menina daquela idade, Ela acompanhou os passos da mulher cruzando o salão, serpenteante naquela veste justa, em direção ao seu pai. Prendeu a respiração quando percebeu que eles estavam mais próximos do que deveriam estar dois adultos estranhos. A música havia ganhado voz e ecoava alta pelo salão, tirando dela a concentração necessária para entender o que viria em seguida: as mãos de seu pai em volta da cintura da mulher, que agora desenhava círculos pelo salão, embalada por ele.

Ela levantou-se, ignorando o refrigerante que acabara de derramar no piso, ensopando seus sapatos baixos. Apertou as mãozinhas que jaziam inertes paralelas ao corpo e estava decidida a fazer algo para acabar com aquilo, ainda que sem saber exatamente como.
Nesse momento avistou um garoto do outro lado do salão. Um adulto em miniatura, nem tão pequeno quanto ela, nem tão grande quanto os demais. Era a primeira vez que via tal menino por aquelas bandas e não sabia qual era seu nome. Resolveu chamá-lo de ‘Ele’, já que na ocasião o nome não importava. Um nome podia ser qualquer um, podia até ser um nome bonito de pugilista, mas Ele bastaria.
O menino de 16 anos não estava vestido como os demais e nem pertencia àquele lugar, mas viera de longe para ensiná-la como utilizar um garfo naquela situação. A menina teve a impressão de que o tempo parou, juntamente com a música frenética, quando Ele olhou para o garfo, para o casal e de volta para ela. Num estalo, Ela entendeu o que tinha de ser feito.

Pegou todo o impulso que a extensão do salão permitiu e pôs-se em disparada, avançando em fúria silenciosa contra o casal formado pela mulher de azul e pelo único homem no mundo que nunca deveria ter tocado naquela cintura. Tentaram detê-la pelo caminho, mas era tarde, Ela transformara-se num borrão de cetim celeste e fluía através de qualquer barreira. Ela tinha o fim. Ele tinha os meios.

segunda-feira, fevereiro 16, 2009

Ah, as crianças!

Pude sair mais cedo do trabalho hoje. De tanto reclamar que não gostava de ficar sozinha na empresa, que lá é escuro, frio, que os canos estalam e o elevador faz uns barulhos nefastos, eis que me deixaram partir com o resto da manada. Isso me deu umas duas horas a mais de sol. Como sol em Petrópolis é algo raro, que deve ser aproveitado sempre que se tem a oportunidade, decidi ir a pé para casa. Nada muito radical, coisa de 20 minutos, moleza para o All star verde exército.

Pelo caminho eu observava as crianças que estudam no turno da tarde fazendo bagunça e me lembrava de quando eu tinha a idade delas. Ou antes. E um pouco depois também. Ok, bem depois. Segundo me consta (e minha mãe me conta) eu fui o capeta em forma de guria desde o momento em que consegui parar sentada sozinha até meu primeiro dia de trabalho. Isso compreende mais ou menos uns 19 anos de inferno astral na vida dos meus pais.

Sou primogênita de um casal que não conseguia ter filhos, mas que tentou de todo jeito, com todos os esforços que eram permitidos pela medicina há 25 anos atrás. Quando conseguiram, a encrenca que deveria ter sido dividida em partes iguais entre três filhos veio toda de uma vez só. Começaram a perceber que tinha algo errado logo que eu parei de mamar e comecei a comer aquelas papinhas nojentas que parecem patê de virilha de dromedário defumado. Quando me davam na boca, eu acumulava tudo nas bochechas (utilizando estratégia que mais tarde descobri pertencer aos hamsters) e cuspia na cara do infeliz mais próximo, geralmente minha avó ou a babá. Aliás, eu chamo de ‘babá’ genericamente, pois não tive chance de pegar intimidade com nenhuma das cinco moças que pediram arrego nas duas primeiras semanas de trabalho. Quando desistiram de bancar o aviãozinho, que eu chamaria de Enola gay, devido à carga que trazia, aprendi a usar o prato e a colherzinha. Aliás, que invenção incrível a colherzinha. Na medida pra usar de catapulta e arremessar a comida a longas distâncias. Eu estava crescendo. E aprimorando minhas técnicas.

A pracinha no domingo era uma guerra suja e injusta. A pobre da minha mãe, um pouco deslumbrada com a idéia de ter uma filha, me vestia de princesa da Disney para ir brincar. Como meus argumentos na época não eram muito fortes, fazia o possível para demonstrar em atos que aquilo não era nada confortável. Logo que me desvencilhava das mãos maternas, corria pro canteiro de areia que ficava embaixo do escorregador, onde as crianças maiores, aquelas que tinham colhões para ficar lá em cima na casinha, jogavam todo tipo de coisa melosa, babada e imunda: palitos de picolé, restos de algodão doce, chicletes mascados, pipoca mole e caca de bodinho. Se depois de chafurdar naquela terra de ninguém eu ainda achasse que estava limpa o bastante para minha mãe ter coragem de encostar em mim, era a deixa pra pedir¹ uma maçã do amor e esfregá-la no cabelo e no vestido, tão logo a casquinha estivesse devidamente amolecida por baba.

¹Pedir, do latim espernear: solicitar veementemente, utilizando-se de táticas de chantagem emocional, tais como se atirar ao chão e bater com a cabeça para chamar atenção dos passantes.

Lembro-me também da minha indiscrição, que causava enorme embaraço aos meus pais, como na vez em que persegui uma senhora amputada dentro de um mercado:

_ Cadê sua perna? - Perguntei com a cara mais lavada do mundo.
_ Eu perdi, minha filha.
_ E por que não procura?! - Eu não me conformava...

Ou então quando me enfiei embaixo do vestido de uma vovó simpática, de seus 70 anos:

_ Nossa! Seus peitos caíram aí, olha! - Eu disse, enquanto buzinava na velhinha.

Minha mãe se habituou a me esconder atrás dela quando passava alguém com alguma particularidade física, por menor que fosse. Eu não fazia por mal, só era curiosa demais e não tinha meios de sanar minhas dúvidas, senão com pesquisa de campo.
Se fosse citar todas as confusões que aprontei, valeria a pena escrever um livro, já que aqui fica pequeno demais para alguém que trucidou pintinhos por esmagamento aos três anos, que fugiu sozinha de ônibus aos cinco, foi pedida em casamento (com direito a aliança roubada) aos sete e incendiou um barraco aos doze...

quarta-feira, fevereiro 11, 2009

Diálogos Cotidianos (pero no mucho)

_ Cheguei em casa ontem e ele tava lá sentado na minha cama com o bilau dentro de um pote com gelo...
_ What the fuck?! (engasga com a comida)
_ É! Olha que idéia brilhante: ele tava lá sem fazer nada e resolveu aparar os pêlos com uma dessas tesourinhas de dobrar...
_ Hahahahahahaha espera, deixa eu me recompor (...) Como ele conseguiu cortar o [suprimido, já que este é um blog de família] com um trocinho daqueles?
_ Foi um cortezinho de nada, ele disse que escapou da mão dele. Sabe como é né, não parava de sangrar nunca mais, cagou o chão do apartamento todo e ele colocou no gelo pra estancar.
_ Ok, isso foi bizarro. Quer frango?
_ Não, já peguei, obrigada. Pior de tudo foi que eu fiquei na mão depois né... O cretino virou pro lado e dormiu.
_ Ah, seja compreensiva. Eu ficaria super chateada se tirasse uma lasca do meu [suprimido]. Não que eu tenha um...
_ Besta.
_ Ele levou a preservação criogênica de esperma a outro nível agora. Congelado in natura...
_ Ai, me dá um cigarro...

A dádiva feita fardo

Ainda lembro-me dele chegando em casa depois da feira de sábado, carregando bolsas pesadas com legumes e as frutas da estação como se não pesassem nada. Dois lances de escadas também não significavam um obstáculo para ele. Sempre trazia alguma besteirinha que eu gostasse (e como criança, gostava de TUDO que tivesse açúcar) e eu rodeava as bolsas feito abelha em vitrine de padaria. O pomar que ficava no fundo no terreno estava sempre limpo, bem cuidado e carregado de frutas. Não podia haver lugar melhor no mundo para eu passar minhas tardes, ora trepada na goiabeira, ora abrindo frutas para deixar no chão para os passarinhos. Eu achava que os passarinhos, que não tinham faca ou canivete, nunca poderiam comer um abacate ou chupar uma laranja, então eu tentava facilitar a vida deles do meu jeito.

Às vezes era preciso que ele me buscasse no meio do mato, quando a tarde começava a cair e eu teimava em me esconder nas minhas fortalezas de taquara. Ele, sempre assustador, com voz de trovão impondo respeito. Eu pequena, em prantos e com a indefectível expressão infantil de ‘fiz besteira, não grita comigo’ estampada no rosto, saía e passava correndo por ele feito bala. Fazia meu dever de casa, tomava banho e só depois aparecia para jantar, na esperança de que ele tivesse esquecido a bronca.

Bronca que aliás, era só dele. Ai dos meus pais se ralhassem comigo por qualquer motivo que fosse. Ele ficava bravo e me defendia com unhas e dentes, ainda que as palmadas fossem merecidas. Nunca fui muito menina, minha mãe obrigava-me a usar vestidos que me atrapalhavam a soltar pipa e eu destruí um ou outro num daqueles tombos espetaculares, dos quais a gente se levantava e olhava em volta pra se certificar de que ninguém vira. Numa dessas, estraçalhei meus joelhos de sete anos, apavorando a todos em casa ao chegar com sangue escorrendo pernas abaixo, misturado a terra, fazendo lama. No pandemônio provocado pelos meus berros de ‘Tá doendo, eu vou morrer’ e pelo meu pai me segurando pra tentar limpar, ele se impôs. Pegou-me no colo e me contou histórias sobre pessoas que haviam se machucado muito mais e que haviam ficado bem depois de serem cuidadas. Embora eu achasse que o pior que podia acontecer a alguém fosse ralar os joelhos, me distraí e acabei deixando que limpassem e colocassem mercúrio nos machucados, enquanto jurava pra ele que não estava doendo, tentando parecer forte para fazê-lo se orgulhar de mim.

Quase vinte anos depois, ele precisa de ajuda para descer as escadas, não consegue carregar mais quase nada sem passar o dia descansando para se recuperar do esforço. Já não levanta a voz e se contenta em olhar a vida pela janela. O pomar virou bosque, que virou matagal e nada mais nasce lá. Até os passarinhos foram voar por outras bandas. Ele não reclama, não aceita ajuda de bom grado e não demonstra como se sente. Eu não interfiro, imagino o quão difícil seja para um homem que já carregou a família nas costas admitir que não consiga calçar os próprios sapatos. Sempre que posso tento ajudar, disfarçadamente para não tirar-lhe a dignidade, quando procuro dar-lhe pequenos problemas para resolver ou quando ando de braços dados com ele na rua, num misto de orgulho - ‘Esse é meu avô.’ - e de medo que ele tropece.

Morri um pouco por dentro quando ele caiu sozinho e, sentado no chão, sem me perceber escondida atrás da porta, brigou com Deus, de olhos marejados, por ter de seguir assim. Pediu que Ele o levasse logo, pois aquilo não era vida. Foi a primeira vez que eu reparei nesse lado da existência dos velhos, no quão desesperador deve ser ter uma alma enorme, que já viveu tanto, presa às limitações de um corpo sofrido e gasto. E eu vou entender quando ele partir, acho até que a gente vai compartilhar um sorriso de alívio.

domingo, fevereiro 08, 2009

On letting go...

Tem uma música do Aerosmith que lá no fundo parece que dá para ouvir um telefone tocando. Talvez não tenha nenhum ruído que faça menção a uma campainha de telefone, mas eu escuto. Vai ver que é por que eu condicionei meus ouvidos a isso. Quem me conhece um pouco que seja, sabe que eu odeio telefone. Do meu lado da linha, eu não presto atenção em nada do que está sendo dito, coisa que para mim já é difícil de fazer olhando nos olhos da pessoa. Do outro lado, a impressão que tenho é que estou jogando minha voz no espaço e que ela não vai ricochetear em lugar nenhum. Acho que tenho medo que a pessoa do outro lado da linha seja tão autista quanto eu.

Nas últimas semanas, toda vez que essa música toca, eu tenho um sobressalto. Acho que também condicionei meu coração a ter sobressaltos. Eu acabo procurando feito uma cega louca o celular e o telefone fixo pela casa para me certificar de que não estão tocando, mesmo que as campainhas sejam absolutamente diferentes do ruído que eu escuto na música. E que pode nem estar lá.

Nos raros momentos em que não estou ouvindo música nenhuma, o telefone toca de verdade. Esteja ele embaixo do meu travesseiro ou largado em cima da mesa de bilhar, eu tenho o mesmo sobressalto. Dessa vez é porque eu sei o que vem pela frente. Nessas horas eu queria nem ter identificador de chamadas, seria uma forma de não sofrer por antecipação. Mas é sempre a história que eu não quero ouvir, o convite que eu não posso aceitar ou a acusação que não cabe a mim. Eu procuro ser sincera sempre, mas tomando muito cuidado porque a sinceridade nem sempre é vista com bons olhos. Ou ouvida com bons ouvidos. Infelizmente, percebo que tenho falhado nessa minha sinceridade sutil, pois eu continuo dizendo uma coisa e as pessoas insistindo em entender outra. Após desistir de tentar me fazer entender, acabo por ouvir a história, declinar do convite, uma, duas, três vezes e engolir em seco a acusação que não é minha.

Eu não gosto de expor tudo que vai na minha cabeça o tempo todo, acho que ‘para sempre’ é tempo demais e escrever a caneta é não se dar a oportunidade de apagar e escrever de novo, quantas vezes forem necessárias, até o seu rascunho ter cara de texto final. Mesmo que você revise, ache que não é nada daquilo (geralmente não é) e apague tudo de novo. Por isso eu prefiro escrever a lápis. Enquanto o papel aguentar, eu apago e tento outra vez.

Mas se o telefone insistir em tocar, se as histórias se alongarem e os convites não cessarem, ao menos por um curto período, uma trégua que seja, eu vou escrever em letras garrafais, com uma dessas canetas para retroprojetor que não apagam nem com álcool, acetona e despacho em encruzilhada:

ME DEIXA.

Mas não me esqueça. Só me mantenha aí em animação suspensa.

quarta-feira, fevereiro 04, 2009

Sincronicidade

Sabe esse papo de sincronicidade? Então, eu não acredito nele. Assim como não acredito em horóscopo, vodu, papai Noel e heteros que ouvem Mika. Mas ultimamente, não sei por que cargas d’água, uma assombração dessas deu para passar os dias tentando me convencer de que existe. Não me surpreenderei quando o papai Noel bater à minha porta às três da manhã, com uma garrafa de vinho argentino na mão, cantarolando Grace Kelly. O que me faz lembrar que durante toda minha infância ninguém jamais ousou tocar no assunto da sexualidade do papai Noel, o que no fim das contas torna perfeitamente cabível a cena acima descrita.

Mas, voltando ao enredo do meu samba de uma nota só, essa tal de sincronicidade deu pra ficar na minha cola nos últimos dias. Ou isso ou eu ando pancada demais, buscando correlações e vendo padrões em tudo. Coincidências significativas ou não, coisas estranhas têm me acontecido. Um beija-flor, provavelmente perdido numa rua cheia de postes, fios e poluição visual, achou que era boa idéia entrar por uma das centenas de janelas do prédio onde trabalho e ficou dando rasantes pelas salas até encontrar um lugar para descansar. Este porto seguro veio a ser minha cabeça. Em 25 anos de existência eu não tinha chegado a menos de um metro de um beija-flor e um deles, talvez o mais suicida, resolve se embolar no meu cabelo. Ele estava cansado e o coração a 500 BPM dele parecia que ia sair pelo bico, o que fez com que eu tentasse pegá-lo para levar até a janela. Mas é impossível. Ele deve ser feito de matéria impalpável, escorregava entre meus dedos feito água e fugia. Mas era só eu me sentar de novo que ele tomava coragem e voltava pra minha cabeça. Por fim ele decidiu que nosso tête à tête estava terminado e saiu pela janela sem sequer prometer um telefonema no dia seguinte.

Dias depois me rendi à curiosidade e fui ao cinema assistir The Curious Case of Benjamin Button. Não chorei. Pra ser sincera, nem me envolvi muito com a trama, que só valeu o ingresso pelo Brad Pitt de óculos escuros em cima de uma moto. Quem já assistiu sabe que um beija-flor, atrevido feito o meu, tem uma participação no filme. Daquelas que eles colocam para você interpretar como quiser, você o faz e não conta pra ninguém por medo de ter entendido tudo errado.

Achava eu que minha história com essas avezinhas intrigantes estava terminada. Até que esta tarde, não me pergunte o porquê, levantei-me de minha cadeira e fui até a janela, coisa que eu nunca faço, dada a vista feia e deprimente. Olhei diretamente para o outro lado da rua e vi o pretérito imperfeito acenando pra mim e apontando pro relógio, como quem diz ‘Te espero aqui. Encontre-me quando sair’. Balancei a cabeça afirmativamente, meu estômago balançou junto, só que em ritmo de rumba e o chão sumiu sob meus pés por uma fração de segundo. Eu não tenho medo do desconhecido, mas o conhecido me apavora a ponto de me tirar o equilíbrio. Refeita do assombro, fechei a janela, no que ouvi um baque surdo. Olhei para trás e foi o tempo de ver um beija-flor (seria O beija-flor?) cambaleando para a marquise, procurando um lugar seguro para se recompor do choque contra o vidro. Não estivesse Jung morto há mais de quarenta anos, eu me encarregaria de abotoar o paletó do cretino hoje mesmo.