quarta-feira, fevereiro 11, 2009

A dádiva feita fardo

Ainda lembro-me dele chegando em casa depois da feira de sábado, carregando bolsas pesadas com legumes e as frutas da estação como se não pesassem nada. Dois lances de escadas também não significavam um obstáculo para ele. Sempre trazia alguma besteirinha que eu gostasse (e como criança, gostava de TUDO que tivesse açúcar) e eu rodeava as bolsas feito abelha em vitrine de padaria. O pomar que ficava no fundo no terreno estava sempre limpo, bem cuidado e carregado de frutas. Não podia haver lugar melhor no mundo para eu passar minhas tardes, ora trepada na goiabeira, ora abrindo frutas para deixar no chão para os passarinhos. Eu achava que os passarinhos, que não tinham faca ou canivete, nunca poderiam comer um abacate ou chupar uma laranja, então eu tentava facilitar a vida deles do meu jeito.

Às vezes era preciso que ele me buscasse no meio do mato, quando a tarde começava a cair e eu teimava em me esconder nas minhas fortalezas de taquara. Ele, sempre assustador, com voz de trovão impondo respeito. Eu pequena, em prantos e com a indefectível expressão infantil de ‘fiz besteira, não grita comigo’ estampada no rosto, saía e passava correndo por ele feito bala. Fazia meu dever de casa, tomava banho e só depois aparecia para jantar, na esperança de que ele tivesse esquecido a bronca.

Bronca que aliás, era só dele. Ai dos meus pais se ralhassem comigo por qualquer motivo que fosse. Ele ficava bravo e me defendia com unhas e dentes, ainda que as palmadas fossem merecidas. Nunca fui muito menina, minha mãe obrigava-me a usar vestidos que me atrapalhavam a soltar pipa e eu destruí um ou outro num daqueles tombos espetaculares, dos quais a gente se levantava e olhava em volta pra se certificar de que ninguém vira. Numa dessas, estraçalhei meus joelhos de sete anos, apavorando a todos em casa ao chegar com sangue escorrendo pernas abaixo, misturado a terra, fazendo lama. No pandemônio provocado pelos meus berros de ‘Tá doendo, eu vou morrer’ e pelo meu pai me segurando pra tentar limpar, ele se impôs. Pegou-me no colo e me contou histórias sobre pessoas que haviam se machucado muito mais e que haviam ficado bem depois de serem cuidadas. Embora eu achasse que o pior que podia acontecer a alguém fosse ralar os joelhos, me distraí e acabei deixando que limpassem e colocassem mercúrio nos machucados, enquanto jurava pra ele que não estava doendo, tentando parecer forte para fazê-lo se orgulhar de mim.

Quase vinte anos depois, ele precisa de ajuda para descer as escadas, não consegue carregar mais quase nada sem passar o dia descansando para se recuperar do esforço. Já não levanta a voz e se contenta em olhar a vida pela janela. O pomar virou bosque, que virou matagal e nada mais nasce lá. Até os passarinhos foram voar por outras bandas. Ele não reclama, não aceita ajuda de bom grado e não demonstra como se sente. Eu não interfiro, imagino o quão difícil seja para um homem que já carregou a família nas costas admitir que não consiga calçar os próprios sapatos. Sempre que posso tento ajudar, disfarçadamente para não tirar-lhe a dignidade, quando procuro dar-lhe pequenos problemas para resolver ou quando ando de braços dados com ele na rua, num misto de orgulho - ‘Esse é meu avô.’ - e de medo que ele tropece.

Morri um pouco por dentro quando ele caiu sozinho e, sentado no chão, sem me perceber escondida atrás da porta, brigou com Deus, de olhos marejados, por ter de seguir assim. Pediu que Ele o levasse logo, pois aquilo não era vida. Foi a primeira vez que eu reparei nesse lado da existência dos velhos, no quão desesperador deve ser ter uma alma enorme, que já viveu tanto, presa às limitações de um corpo sofrido e gasto. E eu vou entender quando ele partir, acho até que a gente vai compartilhar um sorriso de alívio.

5 comentários:

  1. Meu avô se foi quando eu tinha 07 anos, e uma das coisas que me doem quando me lembro disso é que uma vez, ele me chamou, e eu fui emburrada, achando que ele me pediria algum favor - ele andava pouco, e eu não entendia.Ele só queria dividir comigo as suas balas.

    Eu não sou um bom lugar.

    Foi bom te abraçar hoje. Eu tava chorosa por dentro e ainda tive a petulância de te chamar de boba.

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  2. que coisa mais linda esse texto.
    que coisa mais linda.

    eu já não tenho mais avôs. nenhum dos dois. o pai de minha mãe, a pessoa mais sensata e mais trabalhadora que eu já conheci, morreu indo pegar o carro dele no estacionamento do restaurante que minha avó gostava de almoçar aos domingos. ficava longe pra caramba de casa e ele nunca desistiu de levar minha avó lá todos os domingos. todos eles até esse último.

    meu outro avô, o meu herói, morreu faz pouco mais de um ano. e foi a coisa mais foda do mundo, que eu senti como se não houvesse mais deus no mundo.
    lembro de uma vez que eu e meu irmão pegamos o guarda chuva desse meu avô e ficamos jogando um pro outro com ele no meio, tentando pegar. eu devia ter uns 8 ou 9 anos e percebi que ele foi ficando cansado. ele tinha feito safena e eu mal sabia o que era aquilo, mas quando eu vi que ele tava cansando, foi como se um raio me pegasse de cima pra baixo. devolvi o guarda chuva na mão dele e dei-lhe um abraço como se aquilo o pudesse segurar no mundo por mais tempo.

    beijo




    beijo.

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  3. Estou me aproximando da velhice dos meus pais. Não é fácil. Definitivamente, essas coisas mexem muito comigo.

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  4. Esse negócio de envelhecer não é natural, nosso corpo não ta preparado pra viver tanto, por isso todas essas limitações.

    No fundo é tudo "culpa" da nossa inteligência, tecnologia e medicina.

    O meu avô era assim tb, lembro dele nos levando pra fazer "expedições" na Gruta dos Índios, daí nasceu a minha vontade de ser biólogo.

    Depois quando ele já não podia fazer as coisas sozinho, eu não conseguia ver ele naquele corpo, mas o que tava lá dentro era ele sim.

    Sei bem como é isso

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  5. Eu quase não tive contato com meus avós. Meu avô materno e minha avó paterna morreram quando meus pais ainda eram apenas namorados. Meu avô paterno mora no longínquo Piauí e, apesar de ser o neto mais velho dele, somente tive contato pessoal com ele quando era muito pequeno, tipo 3 ou 4 anos de idade.

    Sobrou minha avó materna, com quem convivi muito pouco; mas pelo menos dela eu tenho boa lembranças.

    E essa coisa da dignidade daqueles que envelhecem foi muito bem retratada neste conto de J. M. Trevisan, que recomendo e linko agora: http://www.doutorcareca.com.br/2009/03/17/conto-um/

    Gostei do texto, comovente. Gostaria de ter tido contato maior com meus avós vivos e de ter conhecido os que já se foram. :'(

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