quinta-feira, fevereiro 19, 2009

Por onde eles andaram?

Era uma daquelas festas normais, de vizinhos normais, comemorando o casamento da filha do amigo de alguém, no final do ano de 1989. Ela, uma menina normal de seis anos, que odiava com todas as forças do mundo estar naquele vestido de cetim azul. Numa criança de cabelos loiros cacheados teria ficado angelical, mas em contraste com seus cabelos pretos e os joelhos e cotovelos injuriados que ela ostentava quase com orgulho, era apenas um vestido sem propósito. Não se chamava Sofia, mas viria a descobrir, anos depois, que era bom ser Sofia às vezes, para se esquecer por um minuto das mazelas do mundo. Aqui, se chamará ‘Ela’, uma mulherzinha, não no sentido pejorativo da palavra (uma vez que Ela não sabia o significado de tal palavra), mas sim no sentido de diminuta.

Sua mãe, com filha pequena em casa e outra por vir, preferiu declinar do convite para a festa, prometendo aos vizinhos normais que enviaria seu marido na companhia d’Ela, sua primogênita, para representar a família. Ela já previa uma noite de tédio, na inocência de seus seis anos, onde teria de se entreter ora roubando guloseimas da beirada da mesa, ora tropeçando nas barras dos vestidos, igualmente incômodos e feios, das outras mulheres na festa.
Já ia saindo, correndo atrás do pai que se afastava, quando sua mãe a segurou e disse, com a mão pousada suavemente em seu ombro:

_ Vai. E toma conta do teu pai.

Ela já sabia o que sua mãe queria dizer. Seu pai era um daqueles pais que deveriam ter sido meninos por mais tempo. Vez ou outra aprontava alguma traquinagem de adultos que Ela também não sabia o que significavam, mas sabia sim que deixavam os olhos azuis de sua mãe de um jeito esquisito, parecendo céu nublado. E Ela não gostava de vê-los assim.

Chegando à festa, sua desconfiança se confirmou: nenhuma criança, nenhum brinquedo, nenhum jogo. Apenas adultos que falavam e bebiam sem parar. Música ruim, sem voz. Nada que Ela conhecesse das fitas K-7 ou LPs que eram ouvidos em casa. Sem muita esperança de diversão, aceitou um copo de refrigerante e sentou-se num canto, pondo-se a observar seu pai, que ia ligeiro de grupo em grupo, trocava meia dúzia de palavras entremeadas por sorrisos vazios e voltava a procurar um dos adultos com bandejas cheias de copos bonitos, diferentes daquele que haviam lhe entregado.

Foi quando aquela mulher chegou. Aquela mulher grande, maior que sua mãe, metida num vestido azul de cetim, como o d’Ela. Com olhos de lince que não pertenciam a uma menina daquela idade, Ela acompanhou os passos da mulher cruzando o salão, serpenteante naquela veste justa, em direção ao seu pai. Prendeu a respiração quando percebeu que eles estavam mais próximos do que deveriam estar dois adultos estranhos. A música havia ganhado voz e ecoava alta pelo salão, tirando dela a concentração necessária para entender o que viria em seguida: as mãos de seu pai em volta da cintura da mulher, que agora desenhava círculos pelo salão, embalada por ele.

Ela levantou-se, ignorando o refrigerante que acabara de derramar no piso, ensopando seus sapatos baixos. Apertou as mãozinhas que jaziam inertes paralelas ao corpo e estava decidida a fazer algo para acabar com aquilo, ainda que sem saber exatamente como.
Nesse momento avistou um garoto do outro lado do salão. Um adulto em miniatura, nem tão pequeno quanto ela, nem tão grande quanto os demais. Era a primeira vez que via tal menino por aquelas bandas e não sabia qual era seu nome. Resolveu chamá-lo de ‘Ele’, já que na ocasião o nome não importava. Um nome podia ser qualquer um, podia até ser um nome bonito de pugilista, mas Ele bastaria.
O menino de 16 anos não estava vestido como os demais e nem pertencia àquele lugar, mas viera de longe para ensiná-la como utilizar um garfo naquela situação. A menina teve a impressão de que o tempo parou, juntamente com a música frenética, quando Ele olhou para o garfo, para o casal e de volta para ela. Num estalo, Ela entendeu o que tinha de ser feito.

Pegou todo o impulso que a extensão do salão permitiu e pôs-se em disparada, avançando em fúria silenciosa contra o casal formado pela mulher de azul e pelo único homem no mundo que nunca deveria ter tocado naquela cintura. Tentaram detê-la pelo caminho, mas era tarde, Ela transformara-se num borrão de cetim celeste e fluía através de qualquer barreira. Ela tinha o fim. Ele tinha os meios.

3 comentários:

  1. me veio o mundo aqui, só no espacinho de tempo entre sair de lá e vir pra cá, pra página de comentários.

    um mundo que virou um borrão azul, grudou no meu olho e escorreu pelo rosto abaixo.

    e é mesmo, né?
    por onde eles andaram?

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  2. Mas me deu até uma frustração quando vi o fim do texto.

    Quero mais!

    :D

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  3. Sei lá. Num entendi... :o\
    (¬.¬: pééééééé... Mendoka tapado...)

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