domingo, março 01, 2009

Ganhando cicatrizes.

Após um show de new metal que foi uma desgraça completa, eu e o cover de Joey Ramone que era meu namorado na época decidimos tomar o rumo de casa. Eram quatro e quinze da madrugada do dia oito de março de dois mil e um. Ou 04h15min de 08/03/2001 se preferirem assim. A madrugada estava agradável, como costumam ser as madrugadas de março, e seguíamos pela Rua Sete de Abril, com suas calçadas estreitas e aquela curva fechada que os motoristas sempre fazem com intenção de não fazer. E geralmente acima dos 60 km/h, o que é uma péssima idéia.

Seguíamos de mãos dadas, falando mal da banda, quando senti o baque. Ou será que ouvi o estrondo antes? Agora, tentando lembrar de cada detalhe, não tenho certeza do que percebi primeiro. Quando uma coisa assim acontece acho que nossa percepção de tempo e espaço fica meio descontrolada, ainda que por poucos instantes. O choque forte na coxa esquerda e o vôo estão nítidos na memória. Sim, eu voei. Naqueles centésimos de segundos deu tempo de pensar ‘Fodeu, minha mãe vai me matar, caso eu não morra aqui’. Aterrissei dentro de um táxi que estava estacionado na calçada logo à frente, quebrando o vidro traseiro dele com meu braço esquerdo. Caí em posição fetal, encaixada entre o banco de trás e o que restou do vidro. Devo ter apagado por poucos segundos, pois quando recobrei os sentidos e saí do carro pelo mesmo buraco que fiz ao entrar, o taxista ainda me olhava incrédulo, se perguntando de onde eu teria vindo.

A primeira providência que tomei foi procurar pelo Bruno, vulgo Joey Ramone cover, para ver em que estado ele se encontrava. Por sorte, mais dele do que minha não era o Acre. Percebi que ele estava sentado na calçada, descalço e meio desorientado, mas parecia bem. Eu não sentia nenhuma dor e deduzi que também estava inteira. Logo algumas pessoas começaram a chegar para verificar o que tinha ocorrido, trazendo meus sapatos e as coisas que estavam na minha bolsa e voaram longe. Um cara ligava para o 192 pedindo uma ambulância. Por pouco não arranquei o celular da mão dele. Eram quase cinco da manhã e eu precisava chegar em casa, minha mãe não dormiria enquanto eu não estivesse lá. Eu só pensava em limpar os cacos de vidro, deixar aquela bagunça se resolver sozinha e ir embora.

Foi então que percebi que o segurança da boate onde tinha rolado o show estava cochichando com outro sujeito e apontando para o meu braço, discretamente, como se não quisesse que eu percebesse. Fui checar o motivo da cara de espanto dele e vi que estava com o antebraço arregaçado até o cotovelo, na parte interna. Sabe quando você está com calor e arregaça a manga da sua camisa? Então, bem por aí. Eu lembrei inevitavelmente das figuras nos livros de biologia da professora Christina. Aquele osso branquinho aparecendo em meio à confusão de coisas nojentas que eu não sabia identificar e gordura. Aliás, que abundância de gordura pra um braço tão fino...

Quando caiu a ficha pensei novamente na minha mãe, que devia estar louca pra dormir e percebi, com pesar, que aquela manhã seria longa, na mais otimista das hipóteses. O segurança tirou a camiseta e me entregou para eu enrolar no braço e estancar o sangue. Sangue? Até então não tinha sangue nenhum, acho que o susto foi tão grande que ele sumiu. O braço estava estragado sim, porém limpo. Aproveitei que ainda não estava parecendo cena de filme B dos anos oitenta e coloquei a pele de volta no lugar, estiquei, ajeitei e enrolei a camiseta, bem apertada, em volta do antebraço.

Haviam se passado uns três ou quatro minutos, no máximo, entre descer do táxi e sentar no meio fio para esperar a ambulância. O Bruno, sentado ao meu lado, continuava desorientado, o que não era nenhuma surpresa, pois ele o era no dia a dia também. Percebi a umidade através da camiseta e fiquei mais tranqüila: sim, eu ainda tinha sangue. E pelo visto ele estava saindo todo de uma vez através do corte. Os curiosos já se acotovelavam ao nosso redor e uma profusão de vozes estranhas fazia aquelas perguntas estúpidas que sempre fazem nessas horas, como aqueles repórteres imbecis perguntando para a menina de doze anos que perdeu a família inteira num desabamento:

_ Como você está se sentindo?

Eu quis sugerir a todos que fossem visitar suas progenitoras, mas tinha outras coisas para me preocupar como, por exemplo, o playboy folgado que teimava em tirar os cacos de vidro do meu cabelo, da minha bolsa, de dentro da minha blusa... Ou ainda o Bruno, que continuava contabilizando suas poucas escoriações enquanto repetia num mantra interminável que ia ficar paraplégico.

A ambulância chegou e eu achei ótimo poder me deitar lá dentro e deixar aquele burburinho todo para trás. Entrei na emergência do hospital na horizontal, me divertindo horrores com as luzes que passavam ligeiras no teto do corredor. Ao chegar na sala onde seria atendida, a enfermeira foi logo removendo a camiseta, agora encharcada de sangue, para poder fazer a ‘assepsia do local’, como ela mesma disse. Entenda por ‘assepsia’ enfiar meu braço embaixo de uma torneira com água fria para tentar remover o máximo de cacos de vidro que fosse possível. A água gelada correndo por dentro do ferimento e a careta da enfermeira me trouxeram de volta à realidade e eu tive certeza que aquilo ia demorar bem mais do que eu gostaria...

Continua.

5 comentários:

  1. Olha, não deu pra visualizar bem a cena...dá pra fazer uma reencenação?

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  2. Caramba! O acidente pareceu feio. Q bom q vc ainda está inteira (espero!)! :P

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  3. lembrei do dia que eu meti minha mão na máquina de moer cana e quase perdi dois dedos da mão esquerda. não lembro de quase nada. uma coisa que eu me lembro é de estar dentro do carro, segurando um pano encardido que enrolava minha mão e, aos poucos, ir querendo dormir. No momento seguinte, lembro do rosto aterrorizado da minha mãe iluminado pelo farol de um carro que cruzava com a gente na direção oposto e me deu medo do medo dela. "eu não morri, mãe. tava só dormindo". e senti um dedo meio solto lá no meio, pra não conseguir dormir nem mais um pouco.

    você me fez perceber que eu ainda tenho sangue no corpo.
    pq todo ele gelou.

    me lembrou tambem quando eu capotei com o carro e vieram os paramédicos, querendo saber se eu tava bem. perguntavam um monte de coisas fáceis, mas tudo ao mesmo tempo. Tipo "onde você mora?", "qual o nome do seu pai", "quantos
    dedos tem aqui?" - que me deu vontade de levantar o meu dedo médio e perguntar "e aqui?".
    foi quando eu tive a infeliz idéia de tirar do cabelo um dos cacos de vidro que tinham ficado grudado lá, embaraçado. Os caras surtaram e começaram a apalpar minha cabeça com dedos que pareciam tentáculos de polvo.

    cicatrizes, as vezes, dizem mais que tatuagens.

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  4. Eu já quase furei meu tímpano. Já quebrei dentes. Só isso.

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  5. Enfim a saga se revela! (para mim, que nunca soube com tantos detalhes essa historia.) HAUEHUAEHEAUHU cara eu sempre achei que o nenet parecia alguém famoso xDDD

    eu quase fui decapitado ano passado quando desci uma ladeira de terra à 60 por hora numa bicicleta e não vi a cerca de arame farpado pela qual atravessei com o pescoço.

    =*

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