terça-feira, março 03, 2009

Ganhando cicatrizes: parte II

Quando o ferimento estava parcialmente limpo, pediram para eu me deitar novamente, pois precisavam me fazer umas perguntas. Entraram na sala um PM, precedido por seu bigode absurdo e outra enfermeira, que para meu azar, não era nada sexy. Eles deviam estar brincando de algum jogo e não me avisaram, pois ambos falavam ao mesmo tempo, dirigindo-se a mim, enquanto ignoravam solenemente a presença um do outro. Como eu não conseguia me concentrar nas perguntas, minha mente começou a dar voltas e criar teorias que explicassem aquela situação e a que fez mais sentido foi: Eles tiveram um affair no passado e ela terminou com ele, pois ele passava mais tempo cuidando dos pêlos faciais do que fantasiando com ela vestida de branco, aplicando uma injeção enorme no traseiro militar dele. Deixando de lado os devaneios moribundos de uma mente entorpecida, as perguntas eram do seguinte naipe:

_ Qual o telefone da sua casa?

_ Você bebeu durante o show? Fez uso de alguma substância entorpecente?

_ Qual o nome da sua mãe?

_ Preciso do seu RG, está com ele?

_ É alérgica a algum medicamento?

_ Aquele ali fora é seu namorado?

A enfermeira devia ser fã de reality shows e programas sensacionalistas de fofoca, pois estava muito interessada na minha vida pessoal, enquanto o policial claramente tentava me convencer de que a culpa fora minha e das oito substâncias ilícitas que ingeri misturadas ao álcool minutos antes. Mentira, eu só tinha tomado uma cerveja. Uma mísera cerveja. Um suquinho de cevada. Aguada, diga-se de passagem.

Logo que convenci o PM que não era uma trombadinha viciada perdida na noite suja, ele confessou que na verdade quem estava bêbado era o motorista que me atingiu e que aquelas eram perguntas de rotina. Depois de me acertar, o carro do senhor Flávio Paixão bateu num poste, ou telefone público ou lixeira (não me recordo) e ficou imprestável, obrigando o cretino a fugir a pé, sendo alcançado logo em seguida pela polícia. O que foi inútil, pois ele tinha as costas quentes e eu... Bem, eu só tenho costas tensas.

Nesse ínterim, a enfermeira com complexo de Sônia Abraão já havia ligado para minha mal dormida mãe, que estava a caminho do hospital, transtornada e de pijamas, acompanhada do meu pai, que eu prefiro nem questionar o que estava pensando. Porém, antes que eles pudessem chegar, o médico que me atenderia adentrou o recinto, falando para quem quisesse ouvir:

_ Caraca! Vi um acidente ali na Sete de Abril que deve ter tido vítima fatal!

Fatal, para mim, é o sujeito que vai me costurar entrar na sala de emergência rebolando e gritando ‘Caraca!’, mas mesmo assim quis aproveitar a deixa:

_ Tô aqui! Mais viva do que nunca, mas precisando de reparos.

Eu ainda não estava sentindo dor. Aliás, o mais legal de tudo foi isso: não senti dor proveniente da laceração no braço. A única coisa que me doeu foi o hematoma de quarenta centímetros na coxa esquerda, que fui notar no dia seguinte, já confortavelmente instalada no hospital, enquanto uma completa estranha, atarracada e de mãos enormes e pesadas, me dava banho. Aliás, não desejo isso pra ninguém. Talvez pro canalha que me atropelou, apenas. A coisa mais invasiva do mundo é ter uma enfermeira, parecida com o Nelson Ned de peruca loira, esfregando a mesma bundinha onde sua mãe passou talco. Mas voltemos à sala de emergência, que a parte boa está por vir...

Apresentações feitas, o Dr. Marcelo pediu à enfermeira, a ex do Bigode, aquela que não era gostosa, para me aplicar a anestesia. Ah, sim, então ela não era apenas enfermeira, era anestesista. Aposto que servia café também. Coincidência ou não, a primeira não pegou. Nem a segunda. Na terceira eu já estava rezando para todos os deuses hindus que não permitissem que eu passasse pela experiência de ser costurada a seco. Mas os deuses hindus deviam estar cuidando de alguma outra vaca, e os primeiros pontos foram dados sem anestesia mesmo.

Começaram costurando o que estava solto por dentro, com aquela linha cirúrgica transparente que teoricamente se dissolveria com o tempo. Teoricamente, pois algumas semanas depois meu braço começou a expelir pedaços dos pontos internos e eles não pareciam muito ‘dissolvidos’. Uma artéria havia se rompido e o sangue, tímido a princípio, agora jorrava efusivamente, feito um gêiser de xarope de groselha que ficara feliz em ver o doutor Marcelo. Artéria consertada, chegou a hora de esticar a pele de modo que cobrisse tudo. Agradeci pela anestesia, primeiro por ter funcionado, finalmente. E segundo por ter sido local, me proporcionando a chance de assistir tudo aquilo.

Perdi um pouco de tecido próximo ao punho e eles não conseguiam fechar. O médico sugeriu um enxerto. Espera aí. Eu já não estava detonada o bastante não? Queriam tirar mais um pedaço, é isso? Da bunda? Não, não, estica isso daí! Puxa daqui, costura dali, conseguiram fechar. Tudo bem, necrosou duas semanas depois, mas ao menos a retaguarda estava intacta.

Serviço feito (mal e parcamente, pois não havia um cirurgião plástico para auxiliar o pobre plantonista), eles precisavam checar os possíveis danos internos. Quando foram me transferir para a outra maca, a enfermeira notou uma bolha próxima ao cotovelo. Fecharam o caminho do sangue e ele queria sair para brincar de qualquer jeito. Precisaram espremer meu braço pra tirar o excesso. Imaginem uma grapefuit suculenta num Juicer Walita. Isso mesmo. O passo seguinte foi fazer um curativo bem apertado e fingir que aquilo não estava acontecendo. Eu só conseguia pensar que meu braço ia apodrecer e cair e eu nunca mais ia conseguir tocar violão. Não que eu consiga. Não mesmo, nem um pouco... Na sala de radiografias recomeça a pentelhação: vira de um lado, vira do outro e mais perguntas:

_ Joice, na hora do impacto, você bateu com a cabeça?

Já ia respondendo a verdade: ‘Não lembro’, mas me toquei a tempo que o ‘não lembro’ automaticamente indicaria que bati com a cabeça, sim. Como já estava enjoada de ser espetada, cutucada, virada feito um frango de padaria e Deus, eu tinha fome e sono, respondi:

_ Não, só bati com a coxa, mas já radiografaram ela. Quebrei nada não.

Minha sagacidade assinou a carta de alforria. Fui transferida pra um quarto confortável, com janelas grandes, TV, lençóis engomados e aquela sopa insossa de frango seguida de gelatina como sobremesa, refeição que me pareceu deliciosa diante da minha fome e cansaço. Dormi até o dia seguinte, mas tive um pesadelo horrível, onde o Nelson Ned, usando uma peruca loira, me obrigava a tomar banho com ele.


Epílogo?

Brincadeiras envolvendo anões musicais (?) à parte, passaram-se quase nove anos desde o acidente. Meu braço está ótimo, funciona perfeitamente (de vez em quando dá uns choques na parte que necrosou, mas nada demais) e a cicatriz ficou linda, se comparada ao que eu imaginava que ia ficar. Acabaram fechando o ferimento com dois cacos de vidro dentro. Um deles era pontudo e cortante e saiu naturalmente, quando meti o braço na parede, em casa, brincando com minhas irmãs se não me engano. O outro está aqui até hoje, não faço questão de tirar, pois não incomoda em nada.

O hematoma na coxa demorou mais de um mês para desaparecer e acompanhei as fases dele: preto, marrom, roxo, azul esverdeado e finalmente amarelo, até sumir. Esse sim doía um bocado. Minha mãe não me xingou nem tentou me matar, mas passei alguns meses sob severas restrições para sair de casa. Perdi o primeiro mês letivo em virtude do acidente e aproveitei para matar bastante aula, já que ficariam com dó de me reprovar por falta.

O Joey Ramone? Bem, ele não sofreu nada grave, foi medicado e liberado. Me visitou algumas vezes no hospital, visivelmente envergonhado por ter se comportado feito uma velha esquizofrênica. Ficamos juntos por mais algum tempo, mas hoje não nos falamos mais. Sem ressentimentos, estou acostumada a ser o macho da relação desde que descobri que meninos não servem apenas como parceiros de bolinha de gude.

Quando eu digo que foi divertido, me chamam de louca. Mas sabem de uma coisa? Eu não morri, dei um bocado de risada da minha desgraça e ainda tenho história pra contar pros sobrinhos. O saldo não foi tão negativo assim.

Até o próximo então! Post, não acidente...

8 comentários:

  1. entre os meus amigos, só eu e o Américo capotamos o carro. Eu te contei, não contei, que uma vez a gente ficou horas conversando sobre como tinha sido e tentando converncer o resto do pessoal que capotar o carro - dadas nossas circunstâncias de sobreviventes sem nenhum ferido?
    então.
    não te contei a melhor parte.
    eu capotei sozinho.
    o américo, quando capotou, tinha três meninas com ele. A irmã dele e duas amigas. Tinha chovido e o chão tava quente, então, ficava aquele vaporzinho. Os quatro foram saindo do carro, meio atordoados e o farol continuava aceso. O Américo tinha um Passat Pointer (não faz tanto tempo assim - o carro dele era anacrônico mesmo). Eles foram andando em busca de um orelhão e o farol do carro dando aquele efeito Ghost na cena.
    Foi aí que uma das meninas mandou parar tudo ao gritos e queria que algupem voltasse lá no carro. "Gente.... Imagina se a gente morreu e, na verdade, os nossos corpos estão lá no carro? Vamo lá gente, vamos ver".
    A Tati mandou a menina tomar no cu e o Américo ligou pra mãe dele que, em 15 minutos tava lá pra buscar os quatro.

    Só mais uma coisa: se eu pego o senhor Flávio Paixão ele vai ficar com outras partes do corpo quentes, além das costas.

    ResponderExcluir
  2. É divertido mesmo. Isso me lembra quando estive (bêbado) num acidente de trânsito, com sangue e vítima fatal, dentro de um ônibus em chamas.

    ResponderExcluir
  3. Sabe (um dos inúmeros) o motivo de eu gostar de ti? Nada abala teu humor. Mesmo que seja sarcasmo, nada te derruba. Tu sorri, tu aguenta a dor e a tristeza na unha, tu vê o lado bom nas coisas, mesmo que elas demorem a chegar. E no fim, até as coisas que geralmente não passam, tu força a passar, a irem embora, a sumirem. E se sobra um resticio, uma cicatriz ou algo assim, tu ignora e não deixa te incomodar. E, pelo jeito, usa o que te aconteceu pra ficar mais forte ainda, mais "inderrubável" e inabalável! Nem se tivesse sido uma blazer teriam conseguido perturbar teu espírito! Essa é tua verdadeira força, e no fim, é isso só o que conta de verdade. Por isso tu atrai as pessoas. Não adianta ser um rostinho e um corpinho bonitos. O que tá por dentro é o que brilha mais, o que mais chama a atenção! Por isso todo mundo quer ficar perto de ti, isso ilumina...e as pessoas esperam que seja contagioso, pra elas terem isso também. Mas não é contagioso, não...é algo que vem de dentro de cada um. Ou tu tem ou não tem: é um "mojo" (não aquela massa seca vendida em saquinhos pra gente colocar na panela de a´gua quente, aquilo é miojo). E tu tem de sobra! (mojo, não miojo)

    ResponderExcluir
  4. @Fê, eu dava uns tapas na garota, sério. Faltaram uns tapas no Bruno, inclusive. O senhor Flávio Paixão perdeu a carteira. Só a carteira. E por pouco tempo.

    @Vanzo Nem precisa avisar que tava bêbado, isso fica subentendido ;)

    @Rafael Que lindinho seu comentário, sério. Adorei. Mas eu tenho um monte de miojo também. Faço estoque em casa pra quando não tô a fim de cozinhar hahahaha

    ResponderExcluir
  5. meeeeeuuuu que bizarro esse texto!!

    eu tenho histórias engraçadas em hospital e pronto socorro...
    porém bem menos doloridas =P

    Teve uma vez que meu pai passou por cima de mim com o carro. Qdo cheguei no hospital todo tipo de funcionário aparecia para perguntar se meu pai me batia! rs

    ResponderExcluir
  6. Eu dou banho nos pacientes lá, mas podis crer que eu não tenho cabelo de Nelson Fulano [esqueci o nome]
    E pulemos a parte sobre esfregar bundinhas e blá blá, não é nenhum pouco agradável :X

    A comida era gostosa? Que milagre cara, tenho a ligeira imprenssão que eles cozinham tudo só na água, sem sal sem nada E_E

    Acidentes são horríveis, acho que meu acidente assim, mais pior foi de moto, achei que fosse ter que amputar minha perna [tudo bem que semana passada qnd a carne caiu no meu pé eu achei que fosse ter que amputar o pé também, mas em certa parte era exagero]
    No acidente da moto AMÉM que eu não pude ver o que tava acontecendo cmg, só lembro que eu tava sem capacete, caí, e acordei no outro dia com a cirurgia na perna já feita. [Falaram que minha patela desceu pro meio da perna e eu tive que fazer cirurgia pra voltar pro lugar] Ganhei 1 ano e 6 meses de fisioterapia e uns 6 meses de muleta. O bom é que eu voltei andando e correndo melhor que antes, e agora eu sei andar de skate \o/
    [a parte do caco de vidro tá dentro de você ainda é verdade? O.o]

    Beijos :*

    ResponderExcluir
  7. Isso me lembra que eu não quero ficar com a minha pele lembrando uma pele de coxa de galinha pronta pra ser assada.

    Mas eu já cortei fora a ponta do dedo, sorte que conseguiram costurar... eu felizmente não acompanhei o procedimento e não lembro de nada

    ResponderExcluir
  8. nossa hiper texto levei 13 minutos lendo!

    mas de qualidade te encontrei no orkut na comunidade TWITTER

    ResponderExcluir

Desembucha...